Em meio a tantas incertezas e angústias provocadas pela pandemia de Covid-19, tutores de animais de estimação têm uma preocupação a mais: a possível infecção e transmissão do vírus pelos pets. Alguns casos de Sars-CoV-2 positivo em gatos e cães acenderam o alerta, assim como estudos que sugeriram o potencial das mascotes adoecerem e passarem a enfermidade para humanos. Contudo, um grupo de 13 pesquisadores brasileiros do Laboratório de Etologia Canina (Leca) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesf) tranquiliza os tutores.
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Os especialistas de áreas diversas, como biologia, veterinária e zoonoses, produziram um documento endossado por mais de 60 cientistas, afirmando que nada indica que os pets desenvolvam sintomas de Covid-19 ou que transmitam o vírus a humanos. Para elaborar o texto, divulgado na plataforma Research Gate, os pesquisadores fizeram uma revisão dos poucos estudos que foram publicados sobre a relação da Covid e pets, considerando as metodologias aplicadas. Também se basearam no conhecimento já estabelecido sobre as zoonoses, ou seja, as doenças transmitidas por animais a humanos. De acordo com o grupo, a literatura científica é insuficiente para afirmar a suscetibilidade de cães e gatos à infecção pelo novo coronavírus e, menos ainda, segundo os especialistas do Leca, estabelecer um potencial de transmissão do vírus para os tutores.
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O primeiro caso de um animal infectado surgiu em Hong Kong, em fevereiro. Um cão testou positivo para o Sars-CoV-2. Segundo o Departamento de Agricultura, Pesca e Conservação da cidade, o animal, de 17 anos, apresentava baixos níveis de contágio; ou seja, o vírus estava presente no organismo, mas em uma quantidade pouco significativa. O cachorro morreu, mas as autoridades sanitárias locais afirmaram que a idade avançada e a separação do tutor — diagnosticado com Covid-19 — podem ter contribuído para o óbito.
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Contaminação ambiental
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Até agora, além desse, há relatos de Sars-CoV-2 em quatro gatos (um em Hong Kong, um na Bélgica e dois nos Estados Unidos) e dois cães (mais um em Hong Kong e outro nos EUA). Todos os animais são de pacientes com Covid-19 ou tiveram contato próximo com doentes. “Possivelmente, esse resultado é reflexo da contaminação ambiental que uma residência com uma pessoa com Covid-19 pode ter”, diz a veterinária Aline Santana da Hora, pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutora em epidemiologia experimental aplicada a zoonoses. De acordo com a docente da instituição, os animais domésticos são, de fato, acometidos por vários coronavírus. “A maioria das infecções é assintomática. Além disso, os coronavírus que são próprios de animais domésticos não causam doença em humanos”, ressalta.
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A bióloga Natalia de Souza Albuquerque, doutora em comportamento animal e pós-doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), destaca que, embora o vírus tenha sido detectado nesses animais — e em um tigre do Zoológico do Bronx, em Nova York —, a presença do micro-organismo não indica doença. “Foi detectado o vírus nesses animais, mas não se fala, ainda, do desenvolvimento da Covid-19. Uma coisa é encontrar o vírus, que não necessariamente está ativo ou infectante. Outra coisa é desenvolver a doença”, esclarece.
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No início de abril, pesquisadores coordenados pela Academia de Ciência Agrícola da China pesquisaram o primeiro artigo científico em uma revista renomada, a Science, relatando o potencial do Sars-CoV-2 de infectar animais e destes, por sua vez, contaminar outros da espécie. Apesar de a pesquisa não ter testado se os pets transmitiam o vírus para humanos, o último parágrafo do artigo gerou controvérsia no meio científico. “A vigilância de Sars-CoV-2 em gatos deve ser considerada como um complemento para a eliminação Covid-19 em humanos”, escreveram os autores. Depois disso, organizações de defesa animal de várias partes do mundo começaram a relatar aumento de abandono e de eutanásia de gatos.
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Metodologia
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O principal problema com esse estudo, segundo os pesquisadores do Leca, é a metodologia. Os autores aplicaram alta dosagem de Sars-CoV-2 no nariz de cinco gatos e os colocaram ao lado da gaiola de outros três animais, que não tinham contato prévio com o vírus. Os felinos do primeiro grupo testaram positivo para o micro-organismo, e em um do segundo grupo, o coronavírus foi detectado. O experimento foi refeito, com resultado semelhante. Cachorros, por sua vez, demonstraram baixa suscetibilidade à infecção e transmissão. O estudo não passou por uma fase que se chama revisão pelos pares: antes de ser publicado, um artigo científico precisa passar pela avaliação de especialistas da área.
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A grande repercussão do artigo em redes sociais e sites de notícias levou a veterinária Aline Santana da Hora a elaborar um texto, em parceria com Paulo Eduardo Brandão, do Laboratório de Zoonoses Virais da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, apontando as falhas do estudo chinês. “Não foram apresentados dados laboratoriais que comprovassem a saúde geral dos gatos utilizados no experimento, assim como o status desses gatos para as principais viroses felinas que poderiam contribuir para um quadro de imunossupressão e consequente interferência nos resultados da inoculação experimental”, apontam.
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Além disso, Hora e Brandão afirmam que os exames realizados (RT-PCR e histologia) para comprovar que os gatos foram infectados são insuficientes. “Cabe ressaltar que nenhum dos animais apresentou sinal clínico após a inoculação experimental. Nem ao menos foi identificada lesão tecidual ou material genético de Sars-CoV-2 em pulmões, fato que é bastante intrigante, já que Sars-CoV-2 causa lesões graves em tecido pulmonar de humanos.”
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“A velocidade da pandemia vem pressionando a ciência por respostas rápidas, o que aumenta o risco de serem apresentados estudos com base em pequenas amostras, sem o rigor metodológico necessário e, consequentemente, com resultados inconclusivos e de baixa confiabilidade”, lamenta Carine Savalli, professora-associada do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Leca. “A ciência tem seu tempo para propor e testar hipóteses, refletir sobre os resultados, propor mais estudos, replicá-los em diferentes contextos, e somente com um grande volume de informações acumuladas e evidências muito claras é que se consegue chegar a conclusões mais seguras, que podem continuamente serem confrontadas e atualizadas”, afirma.
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Segundo a pesquisadora, “uma ciência acelerada pode descuidar de controles importantes e sugerir conclusões imprecisas ou equivocadas, que no mundo de hoje, tão conectado, pode causar um impacto rápido e muito negativo nas pessoas”.
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Cuidados
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A servidora pública Sueli Assis, 38 anos, critica o excesso de informações imprecisas sobre a relação de animais com Covid-19. “Na minha opinião, é muito precoce dizer que os animais domésticos podem pegar ou transmitir a Covid-19. Tudo que está acontecendo é muito novo para todos, o que pode gerar desinformação e medo”, diz.
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A tutora da yorkshire Nina afirma que ela e o marido tomam cuidados diários coma cachorrinha. “Durante os passeios, usamos sapatinhos para evitar contato com o chão. Evitamos contatos físicos com outros tutores. Após os passeios, os sapatos são higienizados com água sanitária, a guia e peitoral lavados com sabão, focinho, rostinho são limpos com produtos pet.”
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As precauções são acertadas, de acordo com a bióloga Natalia de Souza Albuquerque. “Uma grande preocupação é os animais carregarem o vírus ao saírem para passear e levá-lo para dentro de casa. Essa é uma real preocupação. O Sars-CoV-2 humano é extremamente transmissível, principalmente porque fica nas superfícies e se mantém ativo nelas. Então, do mesmo jeito que a gente pode carregar o vírus no nosso celular, o micro-organismo pode aderir ao pelo do animal ou mesmo no focinho, se ele tiver contato com alguma superfície que esteja contaminada.”
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Suporte emocional
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Longe de serem um perigo, os pets podem ajudar os tutores a enfrentar a pandemia, diz Carine Savalli. “O suporte social e emocional que os animais de estimação proporcionam às pessoas ganha uma importância ainda maior no momento em que vivemos. Muitos estudos científicos — e, nesse caso, há evidências acumuladas para falar sobre o tema — indicam que a convivência com um animal de estimação pode promover bem-estar ao ser humano com relação a vários aspectos: fisiológicos, físicos, psicológicos e sociais. O convívio e a relação afetiva com os animais de estimação podem ajudar as pessoas a manterem o equilíbrio emocional.”
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Sueli Assis conta que Nina tem sido uma companheira inseparável. “Nina é minha companheira no home office, sempre do meu lado, dando carinho. Brinco com meu esposo que, se não fosse a presença dela, com certeza teria muitos problemas de ansiedade nesse isolamento social. Nos dias de mais angústia, basta chamá-la para brincar que a energia da casa se transforma.”
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O mesmo acontece com a empresária do ramo pet Domitila Barroso, 36 anos. “Graças a Deus, tenho o Fubá”, diz, sobre o dachshund do qual é tutora. “Não só ele. Meus hóspedes caninos estão me ajudando muito. É um trabalho que amo e, nessa época de crise, estar com a casa cheia de pet está sendo um conforto para mim.”
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