André Pessoa
Em quase todas as culturas antigas sobreviveu, de uma forma ou de outra, o simbolismo da Fénix: a ave que renasce das suas próprias cinzas. Analisando a história das últimas quatro décadas na Caatinga do Parque Nacional da Serra da Capivara, no sertão piauiense, a metáfora parece resistir aos milênios, ainda mais quando desvendamos, como numa escavação arqueológica, camada por camada, da mais recente para a mais antiga, a história contemporânea da pesquisadora paulista Niéde Guidon.
Aparentemente a narrativa da Fénix surge na Mitologia Grega, que fala de uma ave lendária, mas também era passada de geração em geração pelos egípcios e até mesmo pelos chineses, numa mensagem determinante: a esperança nunca acaba e que podemos sempre, mesmo dos destroços, renascer. Impossível não fazer uma analogia entre mitologia e ciência tendo como referência uma pesquisadora de 85 anos, com exatamente a metade da sua vida dedicada aos estudos no interior do Brasil. Suas descobertas mexeram com a comunidade científica e suscitam novas questões sobre a antiguidade do homem americano.
Quando a máquina federal burocrata, insensível, enferrujada com as suas engrenagens travadas pela corrupção alimenta a crise mais aguda já vivida pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, deixando a professora Guidon, literalmente, dentro de um buraco – não aquele das escavações arqueológicas, mas um poço sem fundo quase afogada pela falta de recursos e apoio para proteção, manutenção e conservação dessa reserva ambiental exemplar – ela surpreende e, como nas lendas, faz surgir do solo árido e arenoso uma obra fantástica: o Museu da Natureza.
A determinação de Niéde em criar um novo museu foi transportada para o papel pela arquiteta Elizabete Buco que já tinha sua marca na região com o planejamento de passarelas de acesso aos sítios arqueológicos no Parque Nacional da Serra da Capivara e a confecção do projeto do Centro Cultural Sérgio Motta onde estão os laboratórios da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). Buco assina agora o projeto do Museu da Natureza em conjunto com a conceituada empresa de arquitetura A. Dell’Agnese Arquitetos Associados. Moldado com aço, concreto, alvenaria e vidros, o museu incorpora organicamente em seu interior uma rampa helicoidal no sentido ascendente para apresentar a evolução dos eventos geológicos e paleontológicos desde as origens da região até os dias atuais.
Modernas tecnologias – De um lado, protegido pela Caatinga selvagem, oito meses seca e apenas quatro exuberantemente verde, com as suas árvores retorcidas e entrelaçadas, plantas urticantes, cactos espinhentos, e do outro, cercado por um complexo de cânions e desfiladeiros coloridos, a obra se destaca num terreno elevado, escolhido pessoalmente por Niéde Guidon, dando origem a um prédio de 4 000 metros quadrados, único no país. “Não há outro edifício circular e em espiral construído com estrutura metálica. Somente no exterior existem alguns exemplos com essa forma”, explicou o arquiteto Luiz Eugenio Ciampi em entrevista para o portal AECweb, site de arquitetura, engenharia e construção.
Com 12 salas de exposição, que sob a responsabilidade da conceituada empresa Magnestocópio, liderada pelo visionário Marcello Dantas que tem seu trabalho reconhecido por instituições como a Society of Environmental Graphic Desing de Washington (EUA) e com a coordenação de montagem de Sérgio Santos – que deslocou para o sertão do Piauí um verdadeiro “batalhão” de premiados artistas, pesquisadores, técnicos e profissionais especializados nas mais inovadoras e modernas tecnologias museológicas – o novo espaço de ciência, cultura e incentivo ao turismo promete impactar os seus visitantes, incluindo os cientistas mais experientes.
O inicio da matéria, tectônica de placas, água, suco de dinossauros, gelo infinito, a primeira transformação, desfile animal, animais pintados, caatinga, voo livre, animais noturnos e a próxima mudança, são os temas das salas do museu. Na reta final de montagem da exposição para a inauguração na próxima terça-feira, 18 de dezembro, fica evidente um espetáculo que deve encantar do simples sertanejo morador da zona de entorno do parque ao turista mais viajado.
Todo o projeto, da sua concepção aos menores detalhes científicos, foram monitorados pela equipe multidisciplinar da FUMDHAM, uma entidade científica de renome internacional criada sob a liderança de Niéde Guidon, Anne-Marie Pessis, Gabriela Martin e muitos outros pesquisadores no começo da década de 1990. Nesse período, a uruguaia Rosa Trakalo se tornou uma das assistentes mais próximas de Guidon, e coube a ela a gestão do projeto do Museu da Natureza, inclusive a captação dos recursos junto ao BNDES que investiu R$ 13,7 milhões não reembolsáveis nesse empreendimento vizinho ao Parque Nacional da Serra da Capivara.
Infelizmente, o incêndio devastador no Museu Nacional no Rio de Janeiro que queimou parte do nosso patrimônio e manchou a imagem do Brasil no exterior, precisa servir de alerta fazendo com que o Museu da Natureza, na zona rural do pequeno município de Coronel José Dias, se materialize com a responsabilidade de representar o país e mostrar de forma séria e economicamente viável como cuidar do patrimônio cultural e natural tendo como foco a perpetuação do conhecimento para as novas gerações de forma segura e sustentável.
Conta a lenda que a Fénix era um pássaro de penas douradas e brilhantes com uma força descomunal, capaz de transportar um elefante – embora ela própria não fosse maior do que uma águia. Com o legado do Museu da Natureza para as atuais e futuras gerações, Niéde Guidon se mostra ágil e poderosa como a ave da mitologia e torna-se um importante símbolo da imortalidade e do renascimento.