Prestes a completar 40 anos, o Parque Nacional Serra da Capivara ganhou a telona de presente para contar a historia da arqueóloga que ao cria-lo para ir em busca do passado foi além do seu tempo e mostrou que lugar de tecnologia é na pesquisa e no museu.
De frente para a imensidão da Serra da Capivara, qualquer reles mortal, fatalmente, irá se perguntar: é uma ponte sobre o tempo, um quebra-cabeça ou um enigma? A Serra da Capivara é tudo isso. Liga a ancestralidade a um legado cientifico que colocou o Brasil no protagonismo da história da humanidade. A peça central desse mosaico ambientado em um dos 37 últimos lugares selvagens da Terra tem um nome feminino que virou filme. É Niède. Com direção de Tiago Tambelli, o longa-metragem foi lançado no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade (It’s All True, em inglês), com duas apresentações esgotadas no Instituto Moreira Salles (São Paulo) dia 04 de abril (para quem perdeu, nova oportunidade: dia 09 de abril, haverá sessão aberta do filme Niède, às 15h no Sesc 24 de Maio, em São Paulo).
Em meio ao publico estavam autoridades e políticos do estado Piaui, que sedia o Parque Nacional Serra da Capivara e apoia a realização do filme, a exemplo do governador, Wellington Dias, (PT), que prestigiou o evento e minutos antes da abertura reverenciou o trabalho da cientista: “é muito gratificante levar ao conhecimento do publico as histórias de Niède Guidon, suas importantes descobertas. Destaco a visão e preocupação dela com a realidade, por meio da criação do Museu da Natureza, que representa bem mais que um lugar de memória; é uma oportunidade de conhecer as mudanças climáticas. que acontecem no Brasil e no mundo”.
Niéde, com seu pulso firme na gestão de uma área de aproximadamente 130 mil hectares administrada pelo ICMBio, em regime de cogestão com a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), e condução das pesquisas em um ambiente hostil, conquistou a admiração e o reconhecimento de moradores do entorno da Serra da Capivara. Alguns deles vieram até São Paulo, vestindo camisetas do parque para prestigiar o filme que retrata a história de sua terra Natal e também um dos berços de nossa civilização.
Para entender onde nasce a relevância de Niède para o Piauí, Brasil e a ciência mundial é preciso, como ela dedicou sua vida a fazer, olhar para trás. Foi ela, mulher, arqueóloga brasileira, que mergulhou no abismo que separava as pesquisas arqueológicas e paleontologicas na década de 70 nos rincões do Piaui do mundo acadêmico Entendeu de cara que o que havia aprendido sobre a arte rupestre do Brasil era um desmerecimento, ou, no mínimo, um desconhecimento. Nas tocas que hoje pertencem ao Parque Nacional da Serra da Capivara, Niède reconheceu uma arte rupestre elaborada que nada tinha a ver com “rabiscos de criança”, como a reduziram professores da cientista na escola francesa.
Desse momento, Niède emergiu num salto para a ciência brasileira; criou o Parque Nacional Serra da Capivara, o tornou Patrimônio Cultural da Humanidade e ousou contestar a tese de Povoamento das Américas tradicional, ao afirmar com base em datações obtidas por meio de Carbono 14, que o Homo sapiens já estava no Brasil há 100 mil anos. A visão predominante de cientistas norte-americanos situa a chegada do homem nas Américas há cerca de 13 mil anos, vindo da Asia via estreito de Bering. Niède defende por meio de sua pesquisa que devem ter vindo da África por via oceânica.
É um trabalho de respeito. Tanto, que Marcello Dantas, um dos principais curadores brasileiros, que só em 2018, viajou 1 milhão e 70 mil milhas, pelo Brasil e Internacionalmente, abriu agenda para assistir o filme Niède: “a história da Niède é fascinante e as imagens do filme são lindas”. As impressões são de quem conhece bem o cenário do filme ao vivo e em cores, bem como sua protagonista: “faz vinte anos que vou lá. Eu adoro o lugar, justamente pelo seu enigma. Não e um lugar fácil. É para se experimentar, descobrir. O tempo todo a vida esta se manifestando na Serra da Capivara”, explica Dantas.
Não à toa, referência em projetos museológicos que promovem experiências tecnológicas, Marcello Dantas assina a curadoria do Museu da Natureza, inaugurado pouco antes do final de 2018 no Parque Nacional da Serra da Capivara (PI). Dantas é um entusiasta do poder da imersão e sabia que seria um desafio construir uma narrativa para o Museu da Natureza: “um museu como esse pode ser tudo ou nada em termos de contar histórias, esse era o perigo. Mas entendo que mesmo a natureza com toda a sua grandeza tem um senhor e que não existe natureza sem clima. Assim surgiu a ideia de o clima conduzir a historia no Museu da Natureza. A qualidade imersiva é fundamental. E a única alternativa para endereçar as pesquisas da Niède é a tecnologia. É ela a protagonista do seu legado cientifico”.
É desse ponto de convergência entre o resgate da memória que permaneceu por muitos anos abandonada e a constante busca, em meio às adversidades, pelo que existe de mais moderno como ferramenta para lançar luz sobre a história, que Niède traz valor não somente à sua obra, mas também resgata o valor de um povo, representado por vários personagens da comunidade local no filme de Tambelli. Muitos moradores de São Raimundo Nonato, que chamam o município de “Capital da Pré-História” fizeram questão de comparecer à estreia de Niède, que não contou com a presença física da protagonista, pois aos 86 anos de idade, ja aposentada, permaneceu no lugar em que fincou seus pincéis e enraizou convicções entre as pedras no caminho.
A fotografia do filme, assinada por Jacques Cheuiche, conta com o olhar de quem conhece a luz local e se dedica a revelar os paredões com seus encantos e colorações que mudam ao longo do dia. O fotógrafo André Pessoa vive na região ha décadas sob o impactante céu estrelado retratado no filme. O mesmo que despertou o desejo manifestado por alguns críticos de cinema que assistiram o filme de sair da sala de exibição e correr para conhecer a Serra da Capivara e ver se o céu que viram projetado na telona sobre os cânions da região é realmente um efeito celestial.
O resgate da arte da Serra da Capivara vai além das pinturas rupestres de suas paredes. Está em quem olha para elas e registra. Ou dança. Como os homens e mulheres primitivos faziam, porque, pelo visto e conversado com o público na saída da sessão de estreia de Niède, tem coisa que não muda com o tempo: o amor pela terra e a necessidade de expressão pela arte.
O filme tem seu ponto alto pelas mãos de quem está acostumada a ficar na ponta dos pés. A bailarina Lina do Carmo e as crianças que crescem tendo o parque como quintal e mostram que entenderam o seu papel na preservação do patrimônio cultural, socioambiental e na perpetuação do legado cientifico da “Doutora”, como costumam se referir à Niède. As produtoras B&T, piauiense, e a paulistana, Lente Viva, que tem o diretor Tiago Tambelli à frente, assinam na telona essa história. É mágica, mas É Tudo Verdade!
Serviço:
Exibição Nilde no Festival É Tudo Verdade 2019
Filme Niède
Diretor: TIAGO TAMBELLI. 135MIN, BRASIL.
Classificação – Livre
Sesc 24 de Maio
09/04, terça-feira, das 15h às 16h50*
Grátis
*Distribuição de ingressos uma hora antes, na bilheteria.
Exibições do filme Nilde em São Raimundo Nonato (PI)
Os eventos serão nos dias 5 (Dia Mundial do Meio Ambiente e aniversário de 40 anos do Parque Nacional da Serra da Capivara) e 6 de junho:
Ambas as exibições acontecerão no anfiteatro da Pedra Furada
Sessões abertas ao público interessado, convidados e comunidade local.
Simone Siman é jornalista e fotógrafa; escreve com palavras e luz, já visitou mais de 20 Países, é uma entusiasta da inovação, mas em uma coisa não muda: adora conhecer gente, novos lugares e contar histórias.
Texto e Fotos da Jornalista e Fotógrafa Simone Siman