O Parque Nacional Serra da Capivara foi destaque no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung da Alemanha. A reportagem com fotos de André Pessoa e matéria assinada pela jornalista alemã Lilo Berg, ganhou uma página inteira do prestigiado veículo.

A repórter Lilo Berg, que vive em Berlim, veio ao Brasil especialmente para conhecer a Serra da Capivara através da press trip Europa – Piauí 2018, organizada pelo historiador Uwe Weibrecht através da Associação ProBrasil em parceria com o Instituto Ecológico Caatinga (IEC), de São Raimundo Nonato.

Frankfurt é uma das maiores metrópoles da Alemanha e o mais importante centro financeiro do país, repleta de arranha-céus e variadas indústrias. O jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung é considerado um dos mais respeitados e importantes veículos de comunicação da Europa. (Agência Raízes do Piauí).

Veja abaixo a tradução livre da reportagem:

Veículo: Frankfurter Allgemeine Zeitung
Data: 02-05-2018
Original: http://plus.faz.net/…/20…/4c4c93de7f667471cb92c89329a0eb93/…
Tradução: Alemão para português.

Nos passos dos primeiros americanos

Patrimônio da Humanidade no Nordeste do Brasil enfraquece a teoria clássica da colonização do continente

Por Lilo Berg
Fotos André Pessoa

Você sabe aonde viveram os primeiros americanos? Pode ter sido numa área remota do nordeste brasileiro, hoje parte de uma savana seca com o dobro do tamanho da Alemanha? Os locais chamam a área de Caatinga, um antigo nome que significa “floresta branca”, aludindo à vegetação árida e sem folhas do período quente de junho a dezembro. Nos meses seguintes, na estação chuvosa, a natureza estéril brilha com um verde exuberante, os arbustos carregam flores coloridas, e os pássaros voam no ar quente. As montanhas da região alinham o horizonte.

No meio da paisagem única encontra-se o patrimônio mundial da Serra da Capivara com mais de 30 mil pinturas rupestres e centenas de sítios arqueológicos. As descobertas remontam à mais antiga história da América. Talvez o duplo continente tenha sido povoado há partir dessa área e não, como muitos aprenderam na escola, no final do último período glacial pelo Estreito de Bering. Fora dos círculos profissionais, os tesouros da Serra da Capivara e seu significado histórico são pouco conhecidos. Em março, um grupo de jornalistas de ciência da Alemanha, Áustria e Suíça se deslocou até o sudeste do estado brasileiro do Piauí.

Dez mil anos atrás, o clima nessa região era tropical e úmido, com grandes rios e densas florestas. Dente-de-sabres (espécie de felino gigante), tatus gigantes, paleo-lhamas e mastodontes parecidos com elefantes percorriam a natureza exuberante – sempre espreitando os nativos da Caatinga. Eles falam sobre suas lutas, caça, celebrações e sua vida amorosa em seus desenhos rupestres, que eles pintaram com misturas de pigmentos avermelhados de paredes de rocha naturalmente protegidas.

As cenas representam veados, capivaras, onças e outras criaturas da floresta desenhadas no arenito, entre elas pinturas que colocam o caçador lançando o dardo ou ao lado de pessoas dançando em torno de uma árvore, ou um casal posando de mãos dadas. Ali ao lado está a pintura que provavelmente registra o primeiro beijo gravado pela história da humanidade. Apenas ocasionalmente fica claro se é homem ou mulher – por exemplo, em cenas de sexo e espetáculos de dança únicos. Certos símbolos como se fossem códigos se repetem em vários lugares. Elas são expressões de uma linguagem escrita primitiva? Assinatura aritmética antecipada?

Para proteger as obras de arte e a flora e fauna especiais, o Parque Nacional da Serra da Capivara foi criado em 1979. Outro marco foi a declaração pela Unesco como Patrimônio da Humanidade em 1991. As pinturas rupestres são o testemunho de uma tradição rica e complexa, diz o documento da Organização Mundial do Patrimônio Cultural (Unesco), sobre os sítios arqueológicos, que estão entre os mais importantes de todo o mundo.

O fato deles terem sido preservados se deve a perseverança de uma mulher excepcional: Niéde Guidon. Em 1970, a filha de uma brasileira e um francês chegou pela primeira vez na área. Ela tinha visto fotos das pinturas rupestres algum tempo antes, agora a arqueóloga resoluta queria tirar a sua própria foto. Caçadores das aldeias vizinhas mostravam-lhe o caminho para os sítios. “Fiquei imediatamente impressionada com a arte da representação – essas pessoas já tinham uma perspectiva”, disse a cientista de 85 anos ao grupo de jornalistas da Europa durante uma conversa no Museu do Homem Americano.

Guidon estudou pré-história na Sorbonne e se especializou em analisar a arte rupestre. Os pesquisadores franceses ensinaram que era possível fazer isso examinando camadas de solo nas quais alguns fragmentos de rochas pintadas caíram há muito tempo. Nos sedimentos em torno da arte da pedra lascada foram encontradas partículas orgânicas cuja idade os pesquisadores puderam datar usando o método clássico de radiocarbono C14. Sabendo que os fragmentos devem ser mais antigos que a fina camada de sedimento sobre a qual eles caíram, eles estimaram a idade dos desenhos na pedra em cerca de 10.000 anos. Então Guidon e uma jovem equipe de pesquisa partiram em busca de novas pegadas.

Durante escavações diretamente sob as pinturas rupestres em um dos principais sítios do parque, a Toca do Boqueirão da Pedra Furada, apareceram muitas surpresas: Um mergulho para as camadas mais profundas do sedimento até pedras encontradas como se fossem chips recheados de informações que levaram Guidon e seus colegas a se convencerem de que o homem fabricou esses artefatos. Além disso, eles reconheceram fogueiras revestidas de pedras. Em 1986, Guidon publicou suas descobertas em apenas três páginas na revista Nature e sob o título: “Dados de Carbono 14 apontam que existiam humanos na América há 32 mil anos”. Os especialistas reagiram violentamente.

Niéde Guidon nunca aceitou a doutrina então dominante. De acordo com ela, os primeiros humanos chegaram na América cerca de 15.000 anos atrás, vindos da Ásia, cruzando a ponte terrestre de Bering para o continente americano. Sua migração para o sul mais quente foi bloqueada primeiro por poderosas geleiras. Não foi até o derretimento do gelo, cerca de 13.000 anos atrás, que eles puderam continuar sua jornada do que hoje é o Canadá para a costa oeste. Segundo essa teoria, somente há cerca de 12 mil anos, chegaram à Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul, e gradualmente conquistaram o lado oriental do duplo continente.

A existência dessas pessoas é evidenciada por armas e ferramentas características com pontas longas de pedra descobertas em Clóvis, Novo México e depois em centenas de lugares pela América do Norte. Outra sensação foi a descoberta de um osso de quase 13 mil anos encontrado em Montana, cujo DNA sugere uma relação com os povos indígenas da América Central e do Sul. Em conjunto, tudo isso apoia a teoria de Clovis, que está em vigor desde a década de 1930.

A datação da arte rupestre na Serra da Capivara – hoje sabemos que a mais antiga delas tem cerca de 12 000 anos – ainda poderiam ser acordados dentro do modelo de Clovis. Mas o ensaio “Natureza” de artefatos de 32 mil anos explodiu o quadro. Niéde Guidon: “Nossas descobertas contestaram pela primeira vez a doutrina dominante.” Em seguida, tentou defensores de Clovis, contestar à distância os dados do Brasil. Eles alegavam que as peças não foram fabricadas pelo homem, mas que elas foram lascadas por outras pedras que tinham caído de altas falésias e tiveram sua forma por acaso. Os carvões oriundos das fogueiras milenares também foram contestados. Para os críticos, o carvão poderia ser oriundo de incêndios naturais e não de fogueiras. Com isso, as descobertas foram postas em dúvida: não eram fogueiras construídas propositadamente, mas os restos de fogos naturais. Até macacos foram colocados em campo como potenciais fabricantes de ferramentas.

No entanto, logo outras evidências contra Clovis apareceram. Em Monte Verde, no sul do Chile, arqueólogos norte-americanos escavaram uma área bem preservada em terreno pantanoso, que foram datados de maneira incontestável e registraram uma idade de cerca de 14.500 anos. Isso contradiz a teoria do Estreito de Bering. Como poderia os primeiros humanos aparecerem apenas dois mil anos depois, no sul. Em seguida outra datação com 15.500 anos de pontas de lança achadas no Texas, com traços de restos de preguiças gigantes, recuou ainda mais a ocupação do continente. No Uruguai apareceram fósseis de animais da megafauna que poderiam ter sido abatidos por humanos entre 30.000 e 130 000 anos de idade. Fósseis de mastodonte com sinais de ação humana também foram achados na Califórnia. Para a maioria dos especialistas, o modelo Clovis tornou-se obsoleto.

Porém, na ausência de evidências geralmente convincentes, nenhuma das novas teorias conseguiu prevalecer. No caso da Serra da Capivara, ninguém sabe de onde vieram os primeiros habitantes e para onde foram depois. “O que podemos dizer com certeza hoje é que as pessoas viviam nesta área, pelo menos, desde 30 mil anos atrás”, disse o chefe da missão arqueológica franco-brasileira no Piauí, Eric Boeda.

O arqueólogo francês que vive em Paris é muito mais conservador do que sua colega Guidon: “As primeiras pessoas viveram aqui há 100 mil anos atrás”, ela disse em uma conferência de imprensa na sede da Fundação Museu do Homem Americano nas imediações do parque nacional. Criada em 1986 pela equipe de Guidon, a instituição mantém um museu sobre a história do povo americano, com vários laboratórios anexos; aqui são pesquisados os achados do parque. Bem ao lado do avermelhado e moderno prédio baixo fica a casa de Niéde Guidon. “Houve uma grande seca na África há 130 mil anos”, diz ela, apoiando-se na bengala. “As pessoas tiveram que fugir e alguns deles vieram – empurrados por fortes ventos e correntes oceânicas através do Oceano Atlântico até a costa nordeste da América do Sul e se estabeleceram a partir daí no continente”.

O que a grande senhora da arqueologia apresenta é pura especulação. Não há restos de embarcações que comprovem sua tese, e também não existem esqueletos das pessoas daquele tempo. Isso poderia reconstruir relacionamentos de parentesco – idealmente baseados no DNA. Outras pistas não se tornam evidências por falta de dados: Discute-se, por exemplo, um primeiro assentamento da América através de aborígines australianos que poderiam ter chegado à América através das ilhas do Pacífico até a costa oeste do continente americano.

Mas enquanto civilizações desenvolvidas, como a Inca ou Maya, já ocupavam uma parte do continente, ao leste, o traço dos primeiros artistas da Serra da Capivara parece surgir cerca de 6.000 anos atrás. Era o período neolítico em que caçadores e coletores se tornaram agricultores sedentários e sociedades complexas. Também no sudeste do Brasil existem sinais antigos, relata Markus Reindel do Instituto Arqueológico Alemão: “Mas, como antes de cerca de 9 mil anos atrás, a vegetação exuberante gradualmente desapareceu, trocando o clima tropical úmido pelo semi-seco dos tempos modernos, as pessoas mudaram. “O arqueólogo que também pesquisa na Serra da Capivara irá explorar em conjunto com pesquisadores brasileiros os acontecimentos climáticos e cultu rais em detalhes – o pedido é da Fundação alemã de pesquisa.

À medida que o Parque Nacional Serra da Capivara se torna cada vez mais um dos principais pontos da arqueologia internacional, o fluxo de visitantes está diminuindo. Vinte mil convidados vieram em 2014, em comparação com apenas dezesseis mil no ano passado. Isso tem a ver com a crise econômica – para muitos brasileiros, a viagem se tornou simplesmente muito cara – mas também graças a cansativa viagem de ônibus ou carro até o local. Ao chegar no parque os visitantes encontrarão sítios e circuitos turísticos bem preparados com trilhas sinalizadas que levam até as pinturas rupestres, há estacionamento para carros e ônibus, áreas para piqueniques e um centro de visitantes moderno, com lanchonete e outros serviços. Um espetáculo de luz pode ser realizado sob encomenda e ilumina a noite de um dos mais importantes e antigos sítios achados nas imediações da Pedra Furada. As pinturas mostram grandes animais, cervos, caçadores e amantes da dança literalmente desenhados nas rochas.

Os apaixonados pela natureza vão encontrar um ambiente totalmente preservado, onde a proteção garante a exuberância da vegetação e de variados animais, muitos dos quais ocorrem apenas na Caatinga: cactos, bromélias com flores exóticas, pássaros coloridos, lagartos, mocós, tamanduás, tatus, veados e uma população obviamente bastante tímida de aproximadamente quarenta onças pintadas. Trilhas para caminhadas levam a desfiladeiros verdes e serras com vistas deslumbrantes da Caatinga. A paisagem se expande até o vizinho e ainda mais selvagem Parque Nacional da Serra das Confusões.

“A infraestrutura da Serra da Capivara pode ser facilmente comparável com a dos parques nacionais da Europa ou dos EUA”, diz o alemão Uwe Weibrecht que já foi chefe do parque brasileiro. Ele explica que os parques nacionais do Brasil são cronicamente subfinanciados e que a estrutura implantada na Serra da Capivara é resultado principalmente da iniciativa de indivíduos como a pesquisadora Niéde Guidon. Weibrecht apresentou um estudo sobre a promoção do Parque internacionalmente como forma de ajudar no desenvolvimento sustentável da região.

Na Serra da Capivara, porém, espera-se mais visitantes. O parque foi planejado para receber até três milhões de visitantes por ano, diz Niéde Guidon. Esses números não podem ser alcançados tão rapidamente, mas um décimo deles poderia abrir as oportunidades de ganhos da população pobre. Atualmente, o rendimento médio na região é de cerca de 100 euros por mês. “Os solos são salgados demais, a agricultura não vale a pena”, diz Guidon, prevendo que “o futuro pertence ao turismo arqueológico”.

Para abrir caminho para clientes interessados em história cultural e ecologia, a pioneira passou muitos anos lutando pela construção de um aeroporto internacional próximo a São Raimundo Nonato. Na verdade, foi construído e inaugurado em 2015, o layout é chique, moderno – mas está praticamente vazio. Nenhuma companhia aérea voa para o Aeroporto da Serra da Capivara. A operação não vale a pena, faltam hotéis e infraestrutura turística. “Atualmente, estamos procurando investidores em todo o mundo para parcerias público-privadas”, disse o governador do Piauí, Wellington Dias, em uma conversa na capital, Teresina. Ele pretende atrair investidores através de incentivos fiscais e espera sucesso rápido.

Niéde Guidon, no entanto, se mostra pouco otimista: no fim do ano passado ela queria virar as costas para o Brasil e se mudar para Paris, disse a eminência parda da Serra da Capivara para a delegação de jornalistas da Alemanha que foi conversar com ela. Não é a primeira vez que ela ameaça partir. No entanto, quase sempre a Serra da Capivara lhe surpreende com novas descobertas que lhe obrigam a dar mais alguns passos. Agora, ao que parece, ela está à espera do grande salto que definitivamente leve o parque para frente.

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