Por Marisa Eboli *
Férias são ricos momentos para se desligar da rotina, mas nem por isso deixam de ser uma fonte enorme de aprendizado. No início do ano fui de férias para a Califórnia. E como não desfrutar das riquezas natural e cultural da região? Destino quase obrigatório, o Computer History Museum, apropriadamente, no coração do Vale do Silício. Sua missão é preservar as máquinas, as histórias e os personagens principais que inauguram a era da informação, explorando seu impacto contínuo na sociedade.
Não há no mundo maior coleção de artefatos de computação: de calculadoras a cartões perfurados, do mainframe aos minicomputadores, desembocando nos jogos, na inteligência artificial e na robótica. Há de tudo. Como não se impressionar com algo tão maravilhoso!
Visitei também o Museu da Natureza. Projetado em formato de caracol, suas exibições encantam os visitantes. Ao longo de 12 salas, mergulha-se na história natural do planeta, desde o surgimento da vida. Visitam-se os detalhes e as características do sistema solar. Passa-se pela era dos dinossauros até desembocar nos dias atuais, mostrando as mudanças climáticas.
Para finalizar a visita, há experiências sensoriais. Por exemplo, um voo de asa-delta com óculos de realidade virtual, sobrevoando uma linda região de rochas. Vi também um filme narrando os impactos causados pelo homem ao ambiente, com destaque para o aquecimento global. Simplesmente sensacional!
Você deve estar pensando que este museu também fica no Vale do Silício, certo? Errado! Está localizado no Piauí, em plena caatinga, no Parque Nacional da Serra da Capivara, que protege e abriga a maior coleção de arte rupestre ao ar livre do mundo.
O Museu da Natureza foi aberto em dezembro do ano passado e foi idealizado pela arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon. Para compreender o alcance da proeza, é preciso conhecer a vida dessa verdadeira heroína e um pouquinho da região por ela desbravada.
Formada em história natural pela USP, com doutorado em pré-história pela Sorbonne, seu primeiro contato com o que viria a ser o parque foi em 1963, em uma exposição de pinturas rupestres no Museu Paulista. Soube por um morador de São Raimundo Nonato que existiam pinturas semelhantes em sua cidade no sítio arqueológico deCoronel José Dias, no Piauí. Daí para a frente começou sua saga para visitar o local, o que de fato só ocorreu em 1970, passando a ali concentrar seus trabalhos e onde reside até hoje, aos 85 anos de idade.
“Para atingir os objetivos, Niède Guidon focou em educação, educação, educação… Construiu uma carreira brilhante que equilibrou profissão, vocação, missão e paixão, pautando sua razão de viver”
Por sua iniciativa foi criado Parque Nacional da Serra da Capivara, que em 1991 foi declarado pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade. Alguns de seus achados arqueológicos datam de 58 mil anos atrás. A região é marcada por contrastes, na qual a riqueza arqueológica convive com as diversas formas de pobreza de seus moradores. Lá encontraram-se formações geológicas únicas que retraçam todo o seu processo de formação, criando paisagens de grande beleza: arco do triunfo, torres, castelos, cavernas com lagos subterrâneos, chaminés, olhos-d’água etc.
A precária condição de vida da população resulta do clima seco da região e da escassez de água. Ultimamente sofre com a falta de repasses de recursos para manutenção.
O turismo é a atividade de maior potencial para desenvolver a região. Para preservar seus atrativos, é necessário investir na infraestrutura e na educação, a fim de melhorar a prestação de serviços e gerenciar os recursos naturais e culturais.
O trabalho perseverante e competente de Niède resultou num parque bem estruturado e sinalizado que é cuidado por pessoas corretamente capacitadas. Há excelentes guias que conhecem bem o que mostram, pois a maioria trabalhou diretamente com os pesquisadores que fizeram estudos no lugar.
A fábrica de cerâmica da Serra da Capivara é uma das maiores fontes de renda das comunidades locais e é parte do projeto de desenvolvimento da região, idealizado pela própria Niède. Ganhou, em 2008, o prêmio de melhor projeto de sustentabilidade do País.
Uma das etapas desse projeto foi a realização de oficinas de capacitação, com o objetivo de ampliar a renda da população local, garantindo que ficassem na região e dela cuidassem. A luta pela conservação do parque continua sendo protagonizada por Niède, que pensa em se aposentar, mas preocupa-se com a continuidade dos projetos.
É difícil sintetizar o trabalho magnífico de uma vida inteira dedicada à Serra da Capivara, mas alguns pontos devem ser destacados, pois oferecem lições para gestores organizacionais. Liderança, propósito, persistência e resiliência marcam seu trabalho pioneiro e sua carreira, em condições muito adversas.
A leitura e o equacionamento perfeitos das questões relativas à sustentabilidade, atendendo às três dimensões do “triple bottom line”: financeira, social e ambiental. Sem oferecer alternativas de geração de renda e sobrevivência para a população local, não há como preservar o ambiente.
Para atingir os objetivos focou em educação, educação, educação… Niède construiu uma carreira brilhante que equilibrou profissão, vocação, missão e paixão, pautando sua razão de viver.
A péssima gestão da segurança e da sustentabilidade evidenciada nos acontecimentos trágicos dos últimos tempos no Brasil (barragem de Mariana, boate Kiss, Museu Nacional, barragem de Brumadinho, CT do Flamengo) sinaliza que nossos gestores têm muito a aprender com Niède Guidon. Que tal ir para São Raimundo Nonato aprender como empreender e gerenciar? E ainda se deslumbrar com a beleza exuberante da natureza…
* Marisa Eboli, especialista em educação corporativa, é professora da graduação e do mestrado profissional da Faculdade FIA de Administração de Negócios (meboli@usp.br)