A arqueóloga brasileira Niéde Guidon vai comemorar um aniversário muito especial em 2020. Em meados do ano, ela completará 50 anos de trabalho ininterrupto na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, idealizado por ela, no sertão do Piauí, local com a maior concentração de arte rupestre do mundo. Niéde só não lembra exatamente o dia em que chegou porque não tem mais o passaporte com o registro da sua entrada no Brasil, em 1970, decidida a começar as pesquisas arqueológicas na região. Sabe, porém, que foi no meio do ano porque veio nas férias do verão europeu. Na época, ela morava em Paris, onde estudou arqueologia, com especialização em arte rupestre.
A vinda de Niéde para a região da Serra da Capivara revolucionou tudo o que se sabia até então sobre a presença humana nas Américas. Acreditava-se que o homem havia chegado no continente há cerca de 17 mil anos. As descobertas da brasileira, nascida em Jaú (SP), mostraram que essa saga pré-histórica começou muito antes, há mais cem mil anos. Niéde também criou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) – que administra o parque em parceria com o ICMBio – e dois museus: o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza, este em 2018. Tudo isso ajudou a mudar a realidade das comunidades do entorno do parque, com oferta de empregos para os moradores locais, o que valeu a ela até mesmo ameaças de morte de “coronéis” que exploravam trabalho de semiescravidão.
Apesar de meio século de contribuição científica e humanística, esta senhora, ainda firme e resoluta nos seus 86 anos, está lidando com dificuldades financeiras para a manutenção do parque e uma dramática redução no quadro de funcionários encarregados da manutenção das pinturas nos sítios arqueológicos. O baque maior veio com a perda de patrocínio de R$ 2 milhões da Petrobras, engolfada pelo escândalo investigado pela operação Lava-Jato. O número de funcionários caiu de 127 para 14. A parceria com o ICMBio para os próximos anos ainda está em processo de renovação.
Outro motivo de preocupação são as sequelas da chikungunya, doença que a deixou com problemas nas articulações. Niéde precisa de uma bengala para andar e não consegue mais dar as longas caminhadas pelo parque, como fez nesses últimos 50 anos, seguindo trilhas de caçadores para descobrir os sítios arqueológicos. Talvez por já ter adquirido a fibra do sertanejo, talvez por ser “boa de briga” ou, quem sabe, pelas duas coisas, Niéde, não se deixa abater com facilidade e tem projetos que quer implantar na região. “Ainda tem muita coisa para descobrir aqui”, afirma.
Em 2019, o parque recebeu 29.733 visitantes. “Temos condições de receber cinco milhões de pessoas por ano. Mas é preciso investimento”, diz a arqueóloga. Numa manhã de céu azul límpido, típico da caatinga, ela recebeu o #Colabora, antes da pandemia de covid-19, para uma entrevista exclusiva na quietude da sua casa simples, onde o silêncio só é quebrado pelos passarinhos que visitam seu jardim.
“Quando eu vim na primeira missão, eu levei os carvões para França para datar lá, e, quando eles dataram, a chefe do laboratório me chamou e disse: “Deve ter havido algum engano. Esse carvão não pode ser da América”, Diz Niéde.